quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Desassossego

Acendo o abajur – uma boneca rosa empoeirada que se perde em meio a livros, cadernos, remédios – e observo esse quarto que tão bem me representa. A bagunça das roupas, das apostilas reviradas, dos livros jogados, dos sapatos perdidos pelo chão é a representação da desordem da minha cabeça. A parede pintada numa cor viva, os móveis todos coloridos, os penduricalhos espalhados pelo quarto, os enfeites que enchem a escrivaninha, são detalhes coloridos que dão a esse lugar o mesmo ar de menininha que ainda carrego comigo.
Guardo aqui coisas sem as quais eu não viveria, mas o muito aqui existente já não preenche o vazio que trago no peito. Nem mesmo meu xodó, onde agora escrevo, com todos esses botões pesados, esse som encantador, nem mesmo ele é capaz de ocupar algum espaço desse buraco que a cada noite parece aumentar.
Esse que outrora fora meu refúgio, parece agora grande demais, vazio demais. Falta alguma coisa. Faz cada vez mais frio aqui dentro. A cama fica maior a cada noite. E eu fico cada vez menor. Corroída por esse espaço vazio que vai tomando conta de mim, aumentando junto com a cama, junto com o frio.
Ainda tento dormir. Fecho os olhos novamente, na tentativa de encontrar o sono, mas mergulho de novo num mundo de lembranças. E de desejos. Surge a vontade de alguém aqui comigo. Todo para mim. Só meu. Uma companhia que torne a cama menor, o quarto mais quente, o vazio menos vazio.
Preciso dormir. Apago a luz do abajur e mergulho na escuridão do quarto, acreditando ser capaz de esquecer tudo isso e adormecer. Os olhos mais uma vez fechados e, ao invés de uma nova viagem, a chegada de todas as outras. Uma explicação para a insônia, um motivo para os devaneios: não quero apenas uma companhia, quero aquela companhia.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Os pássaros voavam livres por aquele céu azul sem nuvens. E como se quisesse me juntar a eles, lancei-me em meu primeiro e último voo.

domingo, 7 de novembro de 2010

Perto demais

Eu estava ali, encostado naqueles ferros gelados, apenas esperando minha deixa para ir embora. Ela veio falar comigo. Chegou perto, muito perto. Não soube o que fazer. Aquela distância me perturbou, mas eu não poderia transparecer toda essa confusão que se iniciava dentro de mim. Não podia me mover. Suas mãos me tocaram quando ela, por delicadeza ou má intenção, arrumou minha jaqueta. Sentir aquelas mãos em meu corpo foi como partir para um outro universo, viajar pelo espaço e então voltar à terra,  tudo em questão de segundos. Conversávamos qualquer coisa, um assunto tão banal que não faz nem diferença. Ela estava tão perto. Podia sentir o calor de seu corpo. E eu nem mesmo a conhecia.
Ela então se foi. Fiquei olhando enquanto partia. Senti o vento gelado me envolver de repente. Ela não mais estava perto para me esquentar. Aquela sensação estranha tomou conta de mim. Fui embora também. O dia deveria terminar logo, mas aquela conversa, com aquela proximidade toda, não me deixou em paz. Ou talvez o licor de cereja seja o culpado pela minha falta de sono. Mas ela estava tão perto. E eu nem mesmo a conhecia.
Percebi-me pensando nela, em como seria quando a visse novamente. Minha vontade de tê-la próxima assim de novo era grande demais. Quando vi, já havia falado sobre ela, sobre como estava perto. Muito perto. É que eu não a conhecia. E ela chegou tão perto...

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Escreveu.
Ao menos ali podia dar à vida o fim que quisesse.

sábado, 18 de setembro de 2010

Euforia

Caminhava pela calçada atordoado por todo aquele barulho de carros e buzinas e lojas e músicas e tudo aquilo que de tanto ouvir ele já não ouvia. Divagava em pensamentos enquanto seus passos ficavam cada vez mais acelerados, contagiados por aquele ritmo frenético que fazia seu coração acelerar e disparar e sua respiração acelerar e acelerar e acelerar até que ele ficasse ofegante e precisasse parar...
Ele então parava, respirava fundo, fechava os olhos, tentando fazer seu corpo voltar ao normal. Fôlego retomado, voltava a caminhar. Os passos, agora lentos, acompanhavam sua respiração tranquila. Mas o barulho continuava; as pessoas passavam ao seu lado com a mesma pressa de sempre, com a mesma indiferença de sempre; os carros corriam mais e mais; o barulho aumentava e as pessoas também; os carros corriam; seus passos se aceleravam e aceleravam e sua respiração tomava um ritmo cada vez mais rápido e mais rápido; e mais rápido sentia bater seu coração; e o barulho não cessava e as pessoas passavam e os carros corriam; e o barulho aumentava e sua respiração acelerava e seu coração acelerava; e os carros e as pessoas e o barulho e sua respiração e seu coração tão acelerado que parecia explodir em seu peito...
O barulho cessou. Os carros já não mais corriam. As pessoas agora o viam. Sua respiração não era mais ofegante, nem mesmo calma. Seu coração não mais acelerava, nem mesmo batia. Era agora um corpo rodeado por curiosos que logo seguiriam suas vidas. Era apenas um corpo que não mais ouviria o barulho dos carros, das lojas, das buzinas e de tudo aquilo que de tanto ouvir ele já não ouvia.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Madrugadas

A cama parecia cada vez maior, por isso espalhava travesseiros sobre ela. Não gostava de espaços vazios. Procurava, no escuro, mais cobertas. Fazia frio. Queria o outro corpo para esquentar o seu. Não há coberta quente o bastante para aquecê-lo como ele gosta. Os travesseiros não podiam dar a ele o que queria, nem mesmo as mãos. Mas ele aprendeu a usá-las, ao menos por enquanto. Tentava encurtar as noites, mas as madrugadas em claro faziam o tempo passar mais lentamente.
Uma noite, ele se cansou de não mais dormir. Saiu em busca de companhia. Altas horas da madrugada, decidiu ir àquela rua que tanto freqüentava. Avistou alguém. Parou o carro, ela entrou. Acertaram os detalhes e seguiram a um lugar mais reservado, mais propício. Nada romântico, apenas seguro. Não queria encrencas.
Serviço feito, tempo esgotado. Deixou-a onde a encontrou e seguiu para casa. Estava nojento, suado, como se tivesse corrido uma maratona. Fora rude, bruto, queria acabar de vez com aqueles desejos. Ao chegar em casa, tomou um banho e foi se deitar. O amanhecer já começava a despontar e a cama estava novamente cheia de travesseiros. Deitou-se e o frio voltava a tomar conta de seu corpo. A solidão voltava a apertar. Todo o esforço fora em vão. Nada seria capaz de substituir aquela que um dia encheu sua cama e aqueceu-lhe o corpo.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

(...)

Era uma noite de outono. Aquele era o último lugar onde eu gostaria de estar. Mas eu precisava estar lá. O vento gelado fazia minhas mãos doerem, meus pés já estavam dormentes. Como se não pudesse piorar, me conformei, e esperei.
O frio já não me incomodava, meu corpo já estava acostumado àquela sensação gélida. Então, a chuva começou a cair, com pingos cortantes, como se a água fosse capaz de rasgar minha pele. Aquela dor me fez desmoronar. As coisas começaram a girar.
Não era capaz de me mover. Minhas pernas estavam pesadas, meus braços colaram ao corpo. Fui capaz apenas de fechar os olhos e sentir os pingos dilacerarem meu rosto. Sentia minha roupa encharcada, o peso da água caindo sobre meus ombros me fazia crer que não ficaria mais em pé. Minhas pernas amoleceram e meus olhos se fecharam.
Ainda sem recuperar completamente os sentidos, senti o calor daquelas mãos me segurando pelas costas. O carinho daquele abraço me envolvia. A chuva não mais podia cortar minha pele. Já não sentia mais frio. Ele apareceu.

domingo, 30 de maio de 2010

Coisa de mãos

Por ser envolvente e deliciosa a música daquela orquestra, ela tentava voltar os olhos para o palco, mas não conseguia. Aquele corpo ao seu lado a distraia. Não se cansava de admirar aquelas mãos que pareciam tão macias, com dedos finos e compridos, e que faziam com que acreditasse em teorias criacionistas. Olhava aqueles lábios redondos, carnudos o suficiente para fazer surgir nela a vontade de mordê-los. Ainda que sua cabeça repousasse naquele ombro acolhedor, sentia-se distante. Aproximava-se dele com cautela, sem saber o que fazer, apenas respondendo aos movimentos dele. Queria tocá-lo, queria acariciar aquelas mãos que a hipnotizaram, queria beijar aqueles lábios que a encantaram, mas tinha receio de algo que nem mesmo sabia o que era. Ainda assim, aproximava-se. Quando se deu conta, seus braços estavam entrelaçados e seus rostos ainda mais próximos. Mas suas mãos ainda não haviam se encontrado. Ela então buscava, calmamente, a mão dele. Sentindo a mão dela na sua, ele fez seus dedos se entrelaçarem, segurando firme aquela que o buscou, impedindo que ela saísse dali.
Acariciar aquelas mãos macias tornou-se um vício para ela, assim como eram viciantes as conversas entre os dois. Acostumou-se a deslizar seus dedos por entre os dele, pela palma, pelo dorso daquela mão. Ele ria, achando bonitinho isso de mãos. Ela parava, envergonhada. Mas logo voltava a sentir suas mãos se tocando. Ela não podia mais resistir àquelas tentadoras mãos. Nem mesmo ao dono delas...

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Reticência saudosamente cirandada

Quando, daquela vez, eu cantei, a chuva que caía gelada, parou. Quando eu sentia aquela água escorrer pelo meu rosto, lembrava-me de você. Mas você se foi. Então comecei a cantar aquela canção. Aquela que você tanto gosta. Aquela que me faz lembrar você. Aquela que era a nossa música.
Já faz tempo, eu sei. Acontece que hoje, sem maior motivo que a saudade de ontem, acordei com uma vontade enorme de te ver. Não senti teu corpo ao lado do meu. Então fechei meus olhos, e só assim pude te encontrar. Acordei com aquele vazio que tanto me incomoda, e então novamente fechei meus olhos, só pra poder estar contigo.
Eu fiz uma canção com toda essa vontade de te ver. Eu vou voltar a cantar, pra ver se a chuva para de novo, pra ver se a saudade vai embora, pra ver se você me dá de novo teu amor. Eu vou cantar de novo, só pra ver se você me escuta e volta pra mim. Eu vou cantar minha saudade, pra ver se você ouve minha dor. Eu vou cantar minha dor, eu vou cirandar a saudade.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Labirintos vivos

Aqueles corredores faziam sua imaginação aflorar. Tantas histórias, tantas vidas concentradas ali, lado a lado, numeradas e organizadas em celas individuais de diversos tamanhos. Os muitos corpos que por ali passavam pareciam não se incomodar com a presença delas. Na verdade, nem mesmo notavam que aquele mundo era muito maior do que aparentava. Mas ele notava. Sim, ele era capaz de ouvir todas aquelas vozes aprisionadas ali. Ainda que não conhecesse quase nada, transportava-se para o meio daqueles corredores e podia ouvir os gritos mudos daquelas vidas sem corpos. Sentia-se observado, admirado, invejado. Era capaz de perceber o chamado daquelas almas que lhe cercavam, sentindo-se tentado a atendê-los. Ficava cada vez mais difícil não se deixar seduzir por aqueles clamores por liberdade, mas vagava por aqueles corredores buscando uma vida em particular. Tinha um destino certo e não podia perder-se no caminho. Sabia que tudo o que aquelas almas queriam era um corpo onde pudessem voar livres. Até que, enfim, ele encontra o que procurava. Olha para aquela pequena cela, com aquela vida ali dentro, sorrindo para ele. Admira-a por um instante, ouve seu chamado e então, a liberta. Agora aquela alma ganha um corpo: o dele.

sábado, 10 de abril de 2010

Abandono

Quando te encontro já tenho uma idéia fixa na cabeça, passei a tarde pensando nisso. Desejo te ver apenas para falar tudo, e assim o faço: despejo em você tudo que planejei e pensei ser o melhor pra mim, pois você já não me quer mais. Falo sem parar, sem dar deixar nada me interromper, até que uma lágrima escorre de meus olhos, seguida de outra e mais outra. Digo coisas absurdas, reclamo de tudo em você, sem coragem de olhar nos seus olhos, com medo de ser descoberta. Mas você não reage, apenas me olha, sem expressão, como uma estátua colocada ali há anos, na mesma posição. Observa-me como se nada do que falo fizesse sentido, como se não fosse com você... Mas então, quando meus olhos fitam os teus, no auge de meu desespero e meu rosto tomado por lágrimas, um sorriso surge em seu rosto, e como num passe de mágica, aquela estátua parada na minha frente ganha vida, e num passo rápido e largo, cala minha boca com a sua, num beijo quente, carregado de emoção. Sinto meu coração disparar, suas mãos em minhas costas, envolvendo meu corpo, me apertando contra o seu. Meu maior medo tornara-se minha maior vontade. Busco novamente seus olhos, e agora sinto sua respiração tranquila em meu ouvido, acalmando a minha, tornando-as uma só. Seu olhar me pede calma, me tranquiliza, faz que eu me entregue a teus braços, como quem entrega um tesouro e pede que o outro cuide. Já não me pertenço mais...

domingo, 28 de março de 2010

Post emprestado...

Como ando sem criatividade, nem tempo, vou postar aqui uma crônica do Rodrigo Levino. Recebi uma versão em PDF do livro desse cara, um amigo me mandou, e os contos dele acabaram até influenciando meu modo de escrever. Gostei demais. Agora chega de enrolação... Vamos à crônica!


KITCH

Abaixa um pouco, o ombro deixando cair a fina alça da blusa. Sorri, mordendo os lábios após abaixar o rosto e deixar os cabelos curtos cobrirem seus olhos. Sente o desejo entrecortado pelo torpor. O arrepio leve nos pelos do corpo inteiro escoa e ecoa num gemido fortuito.
Sozinha. Não espera por mãos que possam cobrir seus poros, nem uma língua que cultue a lascívia do seu corpo. Tem tido dias assim, de completa solidão, uns goles de vinho barato e cigarros deixados na metade.
Não quer desperdiçar o desejo num rosto sem nome. Cansou. Decidiu que, de duas semanas atrás em diante, será démodé e cafona, apostando umas fichinhas num amor bem breguinha e piegas como as baladas de Barry White.
Anda descalça pela casa, saltando pelos cantos silenciosamente pra não assustar os amores que, às vezes, se escondem atrás das portas e dos móveis. Encolhe-se na ponta do sofá agarrando as pernas e descansando o rosto sobre os joelhos.
Há sempre muitos mistérios gostosos na espera cálida por amores breguinhas e piegas.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Espera

Ela esperou que ele aparecesse. Queria apenas conversar. Queria contar seu dia, falar do fim de semana, das coisas que fez desde a última vez que se falaram. Queria ouvir o que ele tinha para contar. Há dias não se falavam direito. Desejou que ele chegasse para acalmar a solidão que apertava seu peito. Não gostava de esperar, mas esperava. Não queria depender, mas não podia evitar a necessidade da companhia. Isso a contradizia, mas queria vê-lo. Precisava vê-lo.
Então ela esperou, colocou-se à disposição, ficou lá, como quem não quer nada, mas certa do que esperava. E ele não apareceu. Ela esperou mais um pouco, mas parecia não adiantar. A solidão em seu peito não podia ser diminuída por quem ela encontrava. Parecia que só ele seria capaz de tirá-la daquela angústia que aumentava a cada pessoa com quem ela falava. Não encontrava em qualquer um o que precisava. Nem mesmo sabia se encontraria nele o que queria, mas era ele a esperança do momento.
E ela continuou ali, como se não houvesse mais o que fazer, desejando que ele aparecesse em seu cavalo branco, a libertasse daquela torre e a salvasse da maldição da bruxa. Mas ele não era um príncipe encantado, nem mesmo ela era uma princesa inocente. E sua vida, principalmente, não tinha nada de conto de fadas. Ele não apareceu.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Segredo

Era uma daquelas viagens que se faz com a turma. Uma caminhada, uma trilha, banho de rio, churrasco, conversas, natureza. Não poderia ser melhor.
Na verdade, poderia. Depois da longa caminhada, com muitas fotos, risadas, natureza exuberante e lembranças para jamais serem esquecidas, veio o churrasco. Nada demais, muito menos para ela que havia acordado sem fome e um tanto enjoada. Comeu um pouco e resolveu se deitar antes de ir para o rio. Foi até o carro – um daqueles usados para levar crianças para a escola – e esvaziou um banco onde se acomodou.
Já quase dormindo, sentiu cócegas em seu pé e acordou assustada. Ele estava ali. Todos haviam descido para tomar banho de rio, mas ele resolveu ficar, também descansaria um pouco. Deitou-se no banco atrás do que ela estava e começou a fazer massagens em seus pés. Ela gostava de massagens, ele sabia fazê-las maravilhosamente bem.
Mas o que seria apenas uma massagem fazia aumentar o desejo dele por ela. Ouvia-o falar qualquer coisa que ela não mais entendia, e sentia aqueles dedos fortes percorrerem seus pés como se estivessem tomados por um desejo, talvez o mesmo que fazia sua respiração acelerar. Enquanto ouvia aquela respiração ofegante, ele apertava ainda mais os dedos naquela carne macia que ele tanto gostava.
Então, de repente, ele parou, levantou do banco onde estava, foi para o da frente e, ajoelhando-se em frente a ela, a beijou. Um beijo longo, carregado de desejo, mas também cheio de sentimento. Não era o primeiro e nem deveria estar acontecendo – e isso o tornava ainda mais ardente. Ela sabia, de alguma forma, que aquele seria o último, então apertou o corpo dele contra o seu, o envolveu em um abraço apertado e demonstrou como podia toda sua vontade de permanecer ali, daquele jeito. Mas o beijo terminou num abraço, com um triste eu te amo sussurrado no ouvido dela.
Os dois então se recompuseram, trocaram olhares e seguiram ao encontro dos demais. Aquele seria o segredo deles. O mais perigoso e delicioso segredo que eles compartilhariam.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Travessia

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos... (Fernando Pessoa)

A travessia havia começado há tempos. Já não tinha lembranças recentes em que pudesse afirmar, com toda certeza, que a ponte não houvesse se apresentado a ela. Lembra-se com exatidão de quando constatou que não havia mais volta. Foram conversas confortadoras, porém intrigantes. Os três encontros mais produtivos que ela já teve. Talvez tenha mesmo saído deles ainda mais confusa, mas ao menos sabia que aquilo passaria.
Precisava abandonar suas roupas, esquecer seus caminhos, renovar suas energias. Buscava incessantemente uma nova fonte, onde pudesse regozijar-se e, então, seguir sua empreitada com o espírito alimentado. Buscava, naquele instante, uma inspiração para continuar. Não havia desistido. Não, ela não desistiria fácil assim. Mas as forças exauriam-se cada vez mais rápido. Parecia não poder mais.
No entanto, cada vez que pensava terem se esgotado suas forças, ela se levantava, respirava fundo e seguia em frente. Raramente se dizia forte, ou obstinada, ou qualquer coisa assim, mas sabia que, quando necessário, quando realmente fosse preciso, arrumaria forças, se levantaria, e seguiria.
Não sabia explicar – nem mesmo entendia – como fazia para continuar. Sentia-se sozinha. Não que realmente estivesse, mas não havia ainda encontrado a companhia que procurava (ou que ao menos acreditava procurar). A solidão, na verdade, tornara-se parte de seus dias, e ela ocupava-se em aprender a conviver consigo mesma. Aprendera, nesses dias, que a melhor companhia seria ela mesma. Fora ao cinema, saíra sozinha, conhecera pessoas e lugares, presenciara situações, vivenciara emoções que não poderia ter feito com alguém junto. Mas sabia que não conseguiria continuar assim por muito tempo. Tentara não depender das pessoas, e conseguiu mesmo diminuir seu apego aos outros, mas via-se agora num limite que não poderia ultrapassar. Temia que, caso ultrapassasse, não houvesse volta.
Seu maior desejo agora é, na verdade, terminar a travessia. Apesar do medo do que possa encontrar no fim dessa ponte, apesar da incerteza do que a espera por lá, deseja realmente terminar. Não pode mais para ficar tão à deriva, e o que pode ser a terra firme parece não estar tão longe. Então ela seguirá em frente, seja como for.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Contraste

Ela o admirava. Encantava-se com seu corpo bem feito, parecendo ter sido desenhado por uma mão talentosa. Ele tinha olhos negros que pareciam penetrá-la cada vez que a observavam. Seu abdômen bem definido a enlouquecia e seus ombros largos davam a ela uma enorme sensação de segurança. Ela adorava sentir a barba mal feita dele roçar em suas bochechas, em seu pescoço, em sua barriga. Gostava de beijar aqueles lábios carnudos, de mordê-los, de senti-los passeando por seu corpo.

Ele não conseguia mais imaginar sua vida sem ela. Desejava aquele corpo claro, aquela barriga lisa, aquela cintura fina. Sentia-se cada vez mais seduzido por aqueles olhos claros onde podia observar as pupilas dilatadas quando ela olhava para o escuro. Envolvia-se mais e mais com aquele perfume de folhas de outono que cobria o corpo dela e impregnava-se no seu. Sentia-se atraído por aqueles seios redondos, aquele corpo que de tão pequeno parecia frágil, e que de tão perfeito parecia irreal.
Eles tinham um costume incomum, mas que os encantava e envolvia por incontáveis minutos: observar suas mãos juntas. Os dedos finos e claros dela pareciam seduzidos pela mão forte dele. Seus dedos entrelaçados causavam um contraste encantador. Ela era branca, ele era negro. Dois opostos tão parecidos, tão aproximados, tão envolvidos em um só sentimento. Amavam-se, e isso os bastava.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Contentamento Descontente

Por que não contentar-se com o pouco que foi dado ao invés de chorar pelo muito que não recebeu?
Ela não se contentou com o pouco. Não que houvesse realmente sido pouco, mas havia ficado longe do muito que ela esperava. Decidiu buscar o que deveria lhe pertencer: o amor daquele homem. Não poderia ser tão difícil reconquistar alguém com quem dividiu os melhores anos de sua vida. Sua esperança era grande. Seu amor também.
Quanto mais o tempo passava, mais longe ele parecia estar. Naquela que seria sua tentativa derradeira, viu-se com o coração apertado. Foi ao encontro dele tomada por uma tristeza de despedida. Sabia que aquele encontro seria mesmo o último. Olhou-o demoradamente, a ponto de deixá-lo constrangido. Desculpou-se pelas tantas tentativas, despediu-se rapidamente e saiu correndo, sem dar chance para que ele falasse. Sabia que se o ouvisse, seria mais difícil.
No dia seguinte, ele foi à casa dela devolver o casaco que ela havia esquecido no restaurante, quando saíra apressada. A porta da casa estava destrancada, então ele entrou, chamou por ela, mas não obteve resposta alguma. Ao observar com calma o ambiente em que estava, sentiu-se envolvido por uma morbidez forte demais. Tinha certeza de que algo muito ruim havia acontecido. Avistou então, sobre a escrivaninha, um envelope com seu nome, escrito com a letra dela. Abriu e encontrou um texto pequeno, que fez seus olhos encherem-se de lágrimas. Era uma carta de despedida.
“Meu amor por ti foi triste, e suficientemente grande. Amei-te louca e intensamente. Amei-te triste e grandiosamente. Porque todo grande amor só é bem grande se for triste.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Momento Perpétuo

Enquanto ela dormia, ele a observava. A respiração lenta e profunda fazia sua camisola de seda subir e descer em movimentos ritmados. Ele costumava deixar o tempo passar enquanto olhava para aqueles lábios que mais pareciam desenhados à mão, para aqueles olhos que mesmo fechados eram encantadores. Gostava de acariciar aquele corpo, de deitar em seu colo, acomodar-se em seus seios e sentir seu coração bater mais forte.
Ela o sentia aproximar-se, mas continuava de olhos fechados, inerte, sabendo que ele a admirava. Ela gostava disso. Sentia-se desejada quando ele acariciava seu corpo, como se usasse do toque para acreditar que ele era real. Ela sentia seu coração acelerar, sua respiração ficar mais profunda. Desejava que o tempo parasse, para que os dois pudessem ficar ali deitados, abraçados, sentindo o calor de seus corpos entrelaçados.
Ele então começava a beijá-la. Primeiro sua boca, saboreando seus lábios como se fossem uma fruta suculenta. Depois seu pescoço, deslizando sua boca por aquela pele macia. Ela o apertava ainda mais forte, colava seu corpo ao dele. Sua respiração tornava-se cada vez mais ofegante, misturando-se à dele, também acelerada. Seus corpos se misturavam cada vez mais, os dois agora bem acordados, desejando um ao outro. O mundo poderia acabar naquele instante e os dois então perpetuariam aquele momento.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Despedida

Enquanto espera o tempo passar, sem muito desejo de fazer coisa alguma, ela observa o mundo do alto. Os carros, as pessoas, os sons. Tudo se mistura naquela pequena imensidão que seu campo de visão pode alcançar. Os dias ali passados tiveram cores e sons diferentes, momentos diferentes, sensações distintas. O gosto ruim na boca, o barulho do ventilador, o som do elevador subindo e descendo. Os mínimos detalhes que ela só percebia em seus momentos de silêncio. Momentos que ali ela não passará mais. Está indo embora. Pensa no que será dali pra frente, mas não faz muita questão de obter uma resposta. Essa incerteza a amedronta, e a diverte.
Aquele lugar onde passou suas tardes nos últimos meses, agora a cansa, a faz perder o ânimo. Aquela janela, de onde viu as ruas movimentadas, ouviu buzinas, gritos e músicas; de onde desejou saltar e sair voando, agora mostra apenas cores feias e misturadas, sons irritantes e altos. Uma prisão de espírito é o que se tornara aquele lugar para ela.
Tudo o que deseja é ser livre de novo. É sentir o cheiro da chuva nas tardes de verão. É apreciar uma boa companhia numa tarde ensolarada. O que ela mais quer agora é aproveitar a chance do recomeço. A chance de mudar, de fazer diferente, de sonhar. Ela deseja um novo rumo, um novo caminho a seguir, onde as coisas que faziam parte de seus dias, sua rotina, precisam ser deixadas, guardadas apenas na lembrança. Ela sabe que tem uma nova história a escrever, com novos personagens, novos dilemas e novos amores. E chegou a hora de começar.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Inconstância

Ela estava atordoada com o que acabara de ouvir. Não esperava uma reação assim. Ele já fizera mal a ela uma vez, mas ela perdoara. Ela sempre perdoa. Costuma dar segundas chances às pessoas, e com ele não seria diferente. Por pior que tenha sido sua atitude, ficara no passado. Mas ele parecia não ter entendido que insistir em machucar não a faria perdoar de novo.
Ele a julgava inconstante, dizia-se nervoso com as alterações repentinas de humor que frequentemente a afetavam. Dizia não entendê-las, não suportá-las. Mas ela não podia evitar. Ela também não se sentia bem com tamanha inconstância, mas é de sua natureza e ela estava aprendendo a contorná-las.
E agora via-se surpreendida por uma reação que, para ela, era exagerada. Ainda procurou entender, conversar, amenizar o estrago que poderia afetar demais os dois, mas não houve jeito. A surpresa transformou-se em revolta, apimentada por um tom de sarcasmo de ambos os lados, e a conversa tomou um rumo totalmente indesejado. Ele disse coisas que ela recusava-se a acreditar serem os reais pensamentos dele. Mas pareciam ser. Ela ainda tentava diminuir as consequências, fazer com que a discussão deixasse de ser agressiva, mas ele parecia realmente querer machucá-la de novo. As palavras dele a atingiram como um corte feito com papel, que não fere profundamente, mas dói, incomoda e faz-se lembrar por algum tempo.
Ela ainda está tentando digerir toda aquela discussão, entender as razões para que o resultado seja o melhor para ela. Mas é cada vez mais difícil entender, aceitar. E ela então desiste, vira-se, e dorme.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aconchegante Imensidão

Ela observava o mar, sentada num banco, sozinha. Tinha a pele bronzeada pelo sol, longos cabelos cacheados e loiros, e um olhar suave, azul como o céu. Seu corpo era esbelto, suas mãos finas e compridas. Era encantadora.
Quando a solidão apertava o peito, ela costumava olhar o mar e vagar por sua imensidão azul-esverdeada, passeando apenas com os olhos por toda a praia. Nesses momentos, sua beleza tornava-se ainda mais evidente. O sol deixava seus cabelos dourados, e seus olhos brilhavam, mas agora com um ar melancólico que a fazia ainda mais doce.
A falta que ele fazia a tornara menos alegre, dando-lhe um sorriso tímido e um olhar triste. Já haviam se passado anos, mas sua vida nunca seria a mesma. Já tentara mudar de cidade, conhecer novas pessoas, novos amores, mas nada foi capaz de apagar a marca deixada por aquele amor. A maneira repentina com que seus planos e sonhos foram destruídos deixou uma cicatriz em seu peito, que ela fazia questão de esconder. Mostrá-la seria como provocar a curiosidade dos outros, que a indagariam razões para a existência daquela marca. Explicá-la seria ainda mais doloroso, por trazer à memória aquele dia que ela tanto desejava esquecer.
Cansada de tantos dias perdidos e tantas tentativas frustradas, ela se levanta e caminha em direção ao mar. Seus passos são lentos, como os de quem não deseja chegar a lugar algum, mas com a decisão de quem escolhe um caminho. A praia parece tão longa, o mar parece tão distante. Até que então ela sente a água bater em seus pés, acariciá-los como quem os deseja, como quem os quer para si. O calor da água toma conta de suas pernas, ela sente um calafrio que se espalha por todo seu corpo. Seus seios, seus ombros, seu pescoço, vão sendo submersos pela imensidão azul. Seus cabelos são recebidos pela água cálida, enquanto ela continua andando. Seu corpo é então acolhido pelo mar, que a envolve com a paz que ela tanto desejou.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Separação

Momentos antes, ela decidira não voltar mais. Estava certa de que fora a melhor escolha, e havia entendido aquela conversa como uma despedida. Sabia que fora uma despedida. Pegou suas coisas, tudo o que lhe pertencia naquela casa, e deu-lhe as costas. Depois de tudo o que ele dissera, não poderia mais ficar ali. Não voltaria mais. Agora, sua vontade maior era apenas esquecer toda aquela discussão. Ainda não havia conseguido assimilar as coisas. Não poderia ser verdade. Ele não poderia ter feito aquilo com ela. Mas ela não se lamentaria. Não ficaria esperando que ele voltasse para ela. Não havia mais volta. O único rumo a tomar seria a separação. O inevitável e temido fim havia se apresentado a eles. Foi embora, mas com a inevitável sensação de perda. Apesar de tudo, sabia de seus sentimentos, e, ainda que quisesse, não poderia acabar com eles com a mesma rapidez com que decidira sair daquela casa. O tempo seria agora seu melhor amigo. A saudade seria sua nova companheira. E por mais certa que estivesse de sua decisão, a dúvida e o inevitável “e se...” seriam parte de seus dias por algum tempo. Até que encontrasse outro amor. Até que seus sentimentos se renovassem e suas esperanças recomeçassem. E então, tudo voltaria a ser como antes, apenas com um novo nome e um novo endereço.