sábado, 29 de dezembro de 2012

Melhor parte

Escolhe aquele mesmo vinil de sempre. Coloca para tocar e senta-se na cama para ouvi-lo. Gosta de todas as músicas, mas a última é, sem dúvida, a melhor delas. Ainda assim, escuta todas, pacientemente. No fim da penúltima música, o telefone toca e ela vai atender. Ao voltar, o disco já não roda e uma sensação de vazio a preenche. A melhor parte aconteceu sem ela.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Vitrine

Ela despertou assustada, com a sensação de que alguém a observava. Esfregou os olhos tentando reconhecer as coisas ao redor, mas demorou até que suas pupilas dilatassem o suficiente para permitir que visse alguma coisa naquele breu que a cercava. Tateou no escuro à procura do abajur que ficava ao lado de sua cama. Acendeu aquela luz fraca que apenas servia para não atropelar os calçados no chão ou as roupas espalhadas pelo quarto. Olhava ao redor como se procurasse alguém, aquele alguém que a observava quando acordou. Mas não havia ninguém naquele quarto pequeno e com poucos móveis. Ainda assim, ela continuava olhando, com aquela mesma sensação terrível que a tirara de seu sono tão pesado. Intrigada, levantou da cama para inspecionar o resto da casa, mas, novamente, não encontrou ninguém. Já amanhecia e ela precisava trabalhar. Na tentativa de afastar aquela sensação ruim, escolheu um vinil da Elis e colocou para tocar. Ela gostava de ouvir música logo cedo, enquanto se arrumava demoradamente para sair. Tomou um banho, escolheu uma roupa qualquer e a deixou sobre a cama. Com seu moletom surrado, foi fazer um café. Ela gostava de vestir a roupa de sair só depois de comer, pois era atrapalhada demais para correr o risco de precisar escolher outra roupa. E por mais ocupada que estivesse, a todo momento olhava para os lados, buscando o olhar de alguém que a observasse, mas nunca encontrava.  

Caminhando pelo calçadão, como costumava fazer todas as manhãs a caminho do trabalho, deteve-se em frente àquela vitrine. Não se lembrava de ter visto algo assim antes. A impressão que tinha era de que, por trás daquele vidro, houvesse um quarto ou uma casa inteira. Pensou que poderia ser uma loja de decoração, daquelas que vendem móveis planejados para todos os ambientes. Mas havia algo ali que o fazia acreditar que não era uma loja como outra qualquer, talvez pela disposição nada comum daqueles móveis visivelmente usados, pelos objetos aparentemente fora de lugar ou pelo par de sapatos cheios de lama ao lado do que parecia uma porta de entrada. Depois de alguns instantes ali, parado, olhou ao redor e viu que algumas pessoas haviam unido-se a ele na observação daquela estranha vitrine. Foi então que, ao ver nos rostos das pessoas expressões de espanto e descrença, virou seu olhar de volta para aquela vitrine e descobriu que não se tratava de uma loja, mas sim de uma casa de verdade, com uma moradora cuja rotina podia ser acompanhada por todos que ali estavam. Não conseguiu entender os motivos para que aquela casa estivesse ali. Na verdade, foi capaz apenas de olhar para aquela mulher vestida com um moletom surrado e chinelos velhos, preparando seu café da manhã.

sábado, 2 de junho de 2012

Sobre janelas e portas


É linda a paisagem vista pela janela desse cômodo cuja porta teima em ficar aberta. Nesse corredor cheio de passagens que escondem imagens tão possivelmente belas quanto assustadoras, essa é a única porta que permanece sempre aberta. Quando todas as outras se fecham, o brilho que entra pela janela desse cômodo ilumina todo o corredor e atrai toda a atenção para si e para a linda paisagem que pode ser vista dali. Mas quando outra porta se abre, esse brilho diminui. Até que todas se fecham mais uma vez e permitem ao corredor inebriar-se com aquela luz singela e acalentadora...

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Sobre a arte de escolher


Ela detestava escolher. Sabia que optar por apenas uma daquelas várias de si era matar todas as outras. E cada vez que escolhia, sentia tamanha angústia que queria fazer reviver cada uma daquelas que nunca existiram, nem nunca mais poderiam existir.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Ainda assim...

Era um dia como outro qualquer. Na verdade, deveria ser, mas para ele não era. Tinha conversado com ela por horas até que conseguiu convencê-la a encontrar-se com ele no dia seguinte. E o dia seguinte era hoje.
Levantou da cama com a ideia de que a veria, mas tinha que se controlar, porque algo poderia acontecer e os planos poderiam mudar. Ela sempre fazia dessas. E ele sempre ficava esperando, por mais que ela não o pedisse. Então ele se arrumou como se fosse encontrá-la naquele momento. Pensou em tudo o que faria antes de vê-la. Esquematizou em sua cabeça como faria tudo o que tinha para fazer antes de ter a companhia dela de novo. Depois de tudo pronto, saiu.
O dia passou, veio a confirmação do encontro. E trouxe junto aquele nervosismo que há tempos não sentia. A hora passou mais devagar e as coisas perderam um pouco da cor. Mas ele suportou, decidido a não mais sentir nada disso.
Saindo do trabalho, pegou um ônibus e tentou ler qualquer coisa durante o trajeto, que, por mais curto que fosse, seria quase torturante com aquele frio na barriga. Mas quando desceu do ônibus, não pôde mais ocupar a cabeça, nem mesmo com a música que tocava nos fones em seus ouvidos e o isolava do resto do mundo. Aquela ansiedade que tanto sentia tempos atrás havia voltado, e não podia controlá-la. Caminhava devagar, respirava fundo, tentava acalmar-se. Conseguiu. Um pouco, pelo menos.
Quando chegou à lanchonete, ela estava sentada numa mesa com alguns amigos, uns já conhecidos dele, outros novos. Cumprimentou-a com um abraço apertado, daqueles que ele tanto gostava, daqueles que aumentavam seu nervosismo. Cumprimentou a todos com um aperto de mão e sentou-se. Ali estavam eles novamente, e era como se as outras pessoas não estivessem ali. Ele olhava para aquele rosto tão familiar, aquela boca que tanto lhe convidava a loucuras. E o tempo passava tão rápido, mas ele nem via, perdendo-se em toda aquela conversa que só fazia sentido porque podia ouvir a voz dela de novo.
Finalmente, teve a oportunidade que tanto queria: os amigos dela foram embora, deixando os dois sozinhos em meio àquela multidão que tornava a lanchonete tão barulhenta. E eles conversaram, riram, ficaram sérios, falaram de como era antes, de como era com eles. E ele disfarçava seus pensamentos com sorrisos, concordando cada vez que ela dizia que tinha valido a pena. Por mais que, em algum canto de seu ser, ele quisesse abraçá-la e dizer que não queria mais ficar longe, ele sorria. Ainda que tivesse conseguido esconder tão bem dos outros, até de si mesmo, e por tanto tempo aquele sentimento, alguma coisa fez que tudo fosse revelado, mas só para ele. Tudo aquilo de que tentara livrar-se há algum tempo, e que acreditava ter conseguido, voltava a atormentá-lo e encantá-lo.
Ela então se deu conta de como estava tarde e de que precisava ir embora. Ele, como sempre, disse que tudo bem. Ele a acompanhou até seu carro, despediu-se dela com mais um abraço aconchegante e a viu partir. Ele seguiu seu caminho a pé, pensando em como era linda, encantadora, e em como ela destinava a outro as delícias de ser seu namorado.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Mais um conto de desilusão

Passava horas lendo contos sobre o amor. Gastava seu tempo imaginando aqueles personagens. Ganhava tempo se imaginando como aqueles personagens. Sonhava com aqueles homens dos contos que lia, que ao invés de reis de contos de fada eram seres comuns, que a admiravam enquanto dormia. Ao invés de cavalos brancos, os homens que imaginava a encontravam a pé para uma caminhada num parque ao anoitecer. Ao invés dos castelos, seus sonhos se passavam em apartamentos aconchegantes, pequenos e só deles, onde podiam passear de moletom surrado e pés descalços. Encantava-se ao imaginar os bilhetinhos espalhados pela casa, cada um com uma declaração simples do amor que aquele homem dos sonhos sentia por ela. Fascinavam-lhe os elogios matinais, quando ainda estava descabelada e sonolenta. Imaginava as tardes de domingo regadas a vinho e ao som de vinis de Elis e Chico, as noites de bons filmes e ruídos casuais. Sonhava com o amor grande e simples, com a entrega, com os gestos (mais que com as palavras), com os momentos (mais que com as promessas). Podiam parecer sonhos pequenos, mas gostava deles por parecerem tão possíveis.