domingo, 30 de maio de 2010

Coisa de mãos

Por ser envolvente e deliciosa a música daquela orquestra, ela tentava voltar os olhos para o palco, mas não conseguia. Aquele corpo ao seu lado a distraia. Não se cansava de admirar aquelas mãos que pareciam tão macias, com dedos finos e compridos, e que faziam com que acreditasse em teorias criacionistas. Olhava aqueles lábios redondos, carnudos o suficiente para fazer surgir nela a vontade de mordê-los. Ainda que sua cabeça repousasse naquele ombro acolhedor, sentia-se distante. Aproximava-se dele com cautela, sem saber o que fazer, apenas respondendo aos movimentos dele. Queria tocá-lo, queria acariciar aquelas mãos que a hipnotizaram, queria beijar aqueles lábios que a encantaram, mas tinha receio de algo que nem mesmo sabia o que era. Ainda assim, aproximava-se. Quando se deu conta, seus braços estavam entrelaçados e seus rostos ainda mais próximos. Mas suas mãos ainda não haviam se encontrado. Ela então buscava, calmamente, a mão dele. Sentindo a mão dela na sua, ele fez seus dedos se entrelaçarem, segurando firme aquela que o buscou, impedindo que ela saísse dali.
Acariciar aquelas mãos macias tornou-se um vício para ela, assim como eram viciantes as conversas entre os dois. Acostumou-se a deslizar seus dedos por entre os dele, pela palma, pelo dorso daquela mão. Ele ria, achando bonitinho isso de mãos. Ela parava, envergonhada. Mas logo voltava a sentir suas mãos se tocando. Ela não podia mais resistir àquelas tentadoras mãos. Nem mesmo ao dono delas...

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Reticência saudosamente cirandada

Quando, daquela vez, eu cantei, a chuva que caía gelada, parou. Quando eu sentia aquela água escorrer pelo meu rosto, lembrava-me de você. Mas você se foi. Então comecei a cantar aquela canção. Aquela que você tanto gosta. Aquela que me faz lembrar você. Aquela que era a nossa música.
Já faz tempo, eu sei. Acontece que hoje, sem maior motivo que a saudade de ontem, acordei com uma vontade enorme de te ver. Não senti teu corpo ao lado do meu. Então fechei meus olhos, e só assim pude te encontrar. Acordei com aquele vazio que tanto me incomoda, e então novamente fechei meus olhos, só pra poder estar contigo.
Eu fiz uma canção com toda essa vontade de te ver. Eu vou voltar a cantar, pra ver se a chuva para de novo, pra ver se a saudade vai embora, pra ver se você me dá de novo teu amor. Eu vou cantar de novo, só pra ver se você me escuta e volta pra mim. Eu vou cantar minha saudade, pra ver se você ouve minha dor. Eu vou cantar minha dor, eu vou cirandar a saudade.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Labirintos vivos

Aqueles corredores faziam sua imaginação aflorar. Tantas histórias, tantas vidas concentradas ali, lado a lado, numeradas e organizadas em celas individuais de diversos tamanhos. Os muitos corpos que por ali passavam pareciam não se incomodar com a presença delas. Na verdade, nem mesmo notavam que aquele mundo era muito maior do que aparentava. Mas ele notava. Sim, ele era capaz de ouvir todas aquelas vozes aprisionadas ali. Ainda que não conhecesse quase nada, transportava-se para o meio daqueles corredores e podia ouvir os gritos mudos daquelas vidas sem corpos. Sentia-se observado, admirado, invejado. Era capaz de perceber o chamado daquelas almas que lhe cercavam, sentindo-se tentado a atendê-los. Ficava cada vez mais difícil não se deixar seduzir por aqueles clamores por liberdade, mas vagava por aqueles corredores buscando uma vida em particular. Tinha um destino certo e não podia perder-se no caminho. Sabia que tudo o que aquelas almas queriam era um corpo onde pudessem voar livres. Até que, enfim, ele encontra o que procurava. Olha para aquela pequena cela, com aquela vida ali dentro, sorrindo para ele. Admira-a por um instante, ouve seu chamado e então, a liberta. Agora aquela alma ganha um corpo: o dele.