quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Vestimenta

Olhava ao redor e era capaz de enxergar apenas cinza. Não via cores. Sabia que naquele caminho, esse que trilhava todos os dias já havia muito tempo, existiam flores amarelas e roxas, suas preferidas. Tinha certeza de que elas continuavam ali, mas não era capaz de enxergá-las. Tudo o que via eram pedras e paredes, todo o concreto dos prédios, o negro do asfalto e a solidão da rua deserta.
Não era como se não houvesse cores. Ela apenas estava impossibilitada de enxergá-las, como se usasse um óculos capaz de bloqueá-las. Sabia que precisava se livrar desse óculos, pois assim seria capaz de enxergar novamente o roxo e o amarelo das flores. Sabia, inclusive, alguns passos a serem seguidos para enxergar novamente as cores. Mas parecia que, além de usar os óculos, vestia um sobretudo carregado de pequeninas bolas de chumbo – aquelas que se usam como munição em armas de gente sem coração. Ela tirava dezenas dessas bolinhas de dentro dos bolsos todos os dias, mas como num passe de mágica – um truque cruel, é verdade –, as bolinhas voltavam para os bolsos, e o peso daquele casaco voltava a ser quase insuportável.
Alguns dias, então, ela não se livrava de nenhuma bolinha, por estar cansada de vê-las voltarem. Elas então ficavam ali, lembrando a garota do peso que tinham. E, nesses dias, tudo o que ela queria era ficar sentada, olhando para o mar e esperando o tempo, esse ente gozador, passar lentamente. Enquanto isso, o tempo levava com ele um pouco das bolinhas, e também as cores, os pensamentos e o resto de luz que ainda insistia em brilhar dentro dela.

Um comentário:

Anônimo disse...

Tomara que algum dia um calor no peito
tenha logo te feito tirar esse sobretudo,
sobretudo um tão desconfortável, descolorido, manchado
cafona, confuso e pesado.

E que um vendaval maluco levasse seus óculos embora,
que embora estilosos te cegavam para amores,
distorciam coisas e ampliavam as dores.

Que nesse dia incomum, distraída comprasse pipoca,
que procurasse um parque e aberto um suco de uva
e nos primeiros pingos de chuva encontrasse contigo
compartilhando um abrigo uma boa companhia.

E que ela então te mostrasse
e também te convensesse
que a vida é boa, menina.
Que não existe só dor no amor
tão pouco só cores nas flores.